4 de agosto de 2017

Hostilidades sofridas pelo povo Guarani e Kaiowá motivaram confrontos com seguranças armados


Indígenas Guarani e Kaiowá da região de Caarapó após a morte de Clodiodi. Fotos _ Ana Mendes/Cimi

Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação - Cimi

Hostilidades sofridas pelos Guarani e Kaiowá do tekoha - lugar onde se é - Tey'i Kue provocaram conflitos, desde o último domingo, entre os indígenas e seguranças armados da Fazenda Santa Maria, incidente na demarcação Dourados Amambai Peguá I, no município de Caarapó. A menos de 6 km do local, há um ano, o Guarani e Kaiowá Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza foi assassinado.

"Atiram sobre nosso acampamento, xingam, ameaçam, impedem a gente de usar a terra. Da última vez que atiraram na gente, decidimos que tinha que reagir. Não dá mais pra ficar sofrendo assim em cima da nossa terra", afirma uma liderança ouvida que pediu para não se identificar por razões de segurança.

No domingo e na segunda-feira ocorreram confrontos, debelados pela Força Nacional, presente na região, com apoio da Polícia Militar. Não houve feridos. Os Guarani e Kaiowá ocupam cerca de 120 hectares da fazenda, que conta com mais de 3 mil, e exigiam o esvaziamento da sede do latifúndio e a saída dos seguranças armados.   

Um acordo intermediado pela Fundação Nacional do Índio (Funai), celebrado na tarde desta quinta-feira, 3, garantiu uma trégua aos indígenas. "Colocamos para o proprietário que o melhor é o acordo até que a Justiça dê a sua decisão. Isso significa parar com as ameaças", afirma José Vitor Dallanora, coordenador regional da Funai em Dourados.  

O servidor se refere a duas ações que tramitam no Tribunal Regional Federal (TRF) da 3 Região e no Superior Tribunal de Justiça (STJ). No TRF-3 corre um pedido liminar da Procuradoria Federal contra a reintegração de posse de quatro áreas da fazenda que compõem os 120 hectares ocupados pelos Guarani e Kaiowá.

Já no STJ, um recurso está em tramitação tentando retomar o procedimento demarcatório de Dourados Amambai Peguá I. Em decisões de primeira e segunda instância, a portaria do Ministério da Justiça que instalou o Grupo de Trabalho da Funai foi invalidada paralisando a demarcação - que identificou 56 mil hectares de território tradicional nos municípios de Caarapó, Laguna Carapã, Amambai e Dourados.

Os Guarani e Kaiowá chamam de Peguá Guasu esta área. "Publicou (a identificação da terra) e a Justiça suspendeu, e isso aconteceu logo depois de terem matado o Clodiodi. Não sensibilizou, não fez Justiça e governo olharem pro nosso povo. Não podemos esperar enquanto segurança e pistoleiro atacam a gente", afirma o Guarani e Kaiowá.

Entre os protestos levados pelos indígenas à coordenação Funai está a impunidade no caso do assassinato de Clodiodi. A força-tarefa Avá Guarani chegou a prender cinco fazendeiros por envolvimento no crime. Em suas propriedades, confiscou 11 armas, 310 cartuchos e dois carregadores de pistola foram recolhidos pela polícia.

Decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), no entanto, libertou os acusados. No dia 28 de outubro de 2016, o Ministério Público Federal (MPF) apresentou denúncia à Justiça Federal em Dourados contra os cinco envolvidos na retirada forçada dos indígenas que resultou no assassinato de Clodiodi.

"Na próxima semana vamos para a região definir um novo acordo com limites entre a ocupação dos indígenas e do fazendeiro para evitar conflitos. O MPF nos acompanhará. Pode ser que a Justiça demore anos para resolver. Enquanto isso os conflitos não param", informa o coordenador regional da Funai.
Para os indígenas não significa o fim do conflito ou a garantia de que não sofrerão mais ameaças, mas estão dispostos a encontrar uma saída para a situação. A segurança da fazenda é privada e em investigações recentes, a partir do assassinato do cacique Nizio Gomes, do tekoha Guaivyry, o MPF e a Polícia Federal comprovaram que empresas com este perfil compõem consórcios para atacar aldeias e retomadas.  

"Queremos viver aqui em paz, que parem os tiros, as ameaças, os xingamentos. Se continuar vamos ter que reagir porque não vamos morrer calados. O administrador da fazenda não gosta da gente", diz o indígena Guarani e Kaiowá. Ele enfatiza que o povo não tem interesse na sede da fazenda, apenas na demarcação da terra tradicional.  

Conforme o Atlas Agropecuário, 92% do território sul-mato-grossense está em terras privadas; 83% desse total são de latifúndios - a Fazenda Santa Maria, por exemplo. O restante do território do estado está destinado a áreas protegidas (4%), incluindo aqui as terras indígenas, e 1% de assentamentos. Da totalidade das terras do Brasil, 53% encontram-se em áreas privadas e 28% é a taxa de ocupação de latifúndios.   
Corpos encontrados

Ameaças e agressões, relatam os Guarani e Kaiowá, ocorrem com frequência contra indígenas que precisam acessar rios e matas situadas dentro de fazendas incidentes ou contíguas ao território tradicional. Gabriel Martins e Fabio Vera, ambos com 37 anos, saíram do tekoha - lugar onde se é - Yvy Katu para pescar e caçar numa das margens do rio Iguatemi, em julho do ano passado, e não retornaram. Um boletim de ocorrência foi registrado por familiares dias depois.

Nesta terça-feira, 01, levados pelos indígenas, os policiais encontraram os corpos enterrados no interior da Fazenda Dois Irmãos, em Iguatemi (MS). A Polícia Civil se pronunciou e não trata o proprietário e o arrendatário da área como suspeitos do crime de homicídio e ocultação de cadáver de dois Guarani e Kaiowá. Também descarta conflito agrário. Para os indígenas, porém, o crime tem relação com a luta pela terra porque envolve a utilização dos recursos naturais para a subsistência da aldeia.

Os corpos foram localizados pelos próprios indígenas e desenterrados com a ajuda de policiais. Um estava sobre o outro numa vala comum. Anéis, farrapos de roupas e demais vestígios oferecem aos Guarani e Kaiowá "99% de certeza" de que os restos mortais sejam de Martins e Vera. Além das provas e indícios materiais, os Guarani e Kaiowá destacam que o local foi revelado aos indígenas em rituais. "Tínhamos certeza de que eles estariam aqui e não estariam vivos. Há um ano que vínhamos dançando e rezando, montamos a equipe, a Funai, a polícia pra nos assessorar e nos acompanhar em vistoria. Usamos as nossas tecnologias (...) o GPS indígena", diz o cacique Roberto Guarani e Kaiowá, do tekoha Porto Lindo.  

Para os investigadores, o principal suspeito é um ex-funcionário da fazenda demitido há poucos meses. Conclusões, no entanto, tiradas pelos policiais antes do laudo cadavérico ser realizado e da análise balística das balas encontradas com os corpos. Para lideranças da Aty Guasu, o histórico de ocorrências semelhantes no Mato Grosso do Sul, envolvendo indígenas agredidos, ameaçados e mortos por fazerem algum uso de rios, córregos e açudes localizados em fazendas poderia, por si só, deveria levar os policiais a terem cautela ao descartar hipóteses. Para os Guarani e Kaiowá, um dos casos mais marcantes foi o do jovem de 15 anos Denilson Barbosa, do tekoha Tey'i Kue, torturado e assassinado em fevereiro de 2013.

Denilson e outros dois jovens de sua faixa etária saíram do tekoha, no município de Caarapó, para pescar num córrego localizado em uma fazenda incidente sobre o território indígena quando numa estrada vicinal foram abordados por pistoleiros. Os três Guarani e Kaiowá fugiram, mas Denilson acabou pego e morto. O corpo do jovem apresentava marcas de tortura e um tiro abaixo do ouvido, conforme exame necroscópico do Instituto Médico Legal (IML). O fazendeiro Orlandino Carneiro Gonçalves, 61, confessou ter atirado no adolescente e que o fez por ter se assustado com a presença dos indígenas. O crime segue sem punição.

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