3 de maio de 2017

Relatório da CPI da Funai criminaliza antropólogos, procuradores, Cimi, CTI e ex-ministro

Ruralistas indiciam também 35 indígenas, alguns apontados como “supostos” ou “argentinos”; CPI foi articulada na mansão da FPA

Nilson Leitão, relator da CPI e presidente da FPA.
(Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)


Por Alceu Luís Castilho
em De Olho Nos Ruralistas

Entre os 35 indígenas indiciados pela CPI da Funai e do Incra, na Câmara, 7 são apontados como “argentinos” e “supostos” indígenas. Com “alegado” vínculo com uma das áreas reivindicadas, o Morro dos Cavalos, em Santa Catarina. Outros 2 indígenas são apontados como “supostos”. Mais 7, como “autodeclarados”, 6 deles da “suposta etnia Kanela do Araguaia”. Os caciques Babau e Valdelice, da Bahia, são apresentados entre aspas, com “cacique Babau” e “cacique Valdelice” entre aspas, após seus nomes de batismo. Outros 8 não são apresentados como indígenas, mas como “vinculados a acampamentos”.

Os exemplos acima mostram o relatório da CPI – trabalhado há mais de um ano pela bancada ruralista – como uma peça discursiva. Não há base antropológica porque também os antropólogos foram indiciados, sob a acusação de elaborarem laudos “fraudulentos”. Uma no Rio Grande do Sul, três em Santa Catarina, nove no Mato Grosso do Sul, duas na Bahia. Quinze antropólogos ao todo, portanto. Entre eles Maria Inês Ladeira, do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) em São Paulo, uma das mais respeitadas do país. Ela encabeça a lista de indiciados em Santa Catarina.

O relatório da CPI está sendo discutido desde o ano retrasado em reuniões da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que se reúne todas as terças-feiras em uma mansão no Lago Sul, em Brasília – imóvel e almoço bancados por entidades do agronegócio. Os parlamentares não se furtaram em indiciar um ex-colega de Congresso, o ex-deputado José Eduardo Cardozo (PT-SP), ministro da Justiça durante o governo Dilma Rousseff. Paulo Maldos, um dos responsáveis nesse governo pela interlocução com movimentos sociais, também foi indiciado.

UMA LEITURA JURÍDICA PARTICULAR

Há uma leitura particular do universo jurídico pela bancada ruralista. Três procuradores foram indiciados no Rio Grande do Sul. Uma em Santa Catarina. Sete no Mato Grosso do Sul. Um no Mato Grosso, quatro na Bahia. Dezesseis ao todo. Todos por “indícios de condutas antijurídicas”. O diretor jurídico da FPA durante quase todo o período da CPI era o deputado Osmar Serraglio (PMDB-PA), hoje ministro da Justiça – sucessor de Alexandre de Moraes, hoje no Supremo Tribunal Federal e apontado como principal interlocutor da bancada ruralista no STF.

A CPI foi presidida pelo deputado Alceu Moreira (PMDB-RS), célebre por defender a resistência armada conta indígenas, durante uma audiência no Rio Grande do Sul. O relator foi o deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), atual presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária. O subrelator da Funai – pois a CPI trata também do Incra, ainda que secundariamente – é outro líder da bancada ruralista, dono de terras em Rondônia, o deputado Valdir Colattto (PMDB-RS).

CONSELHO INDIGENISTA NA MIRA

Os parlamentares defensores do agronegócio – ou, eles mesmos, grandes proprietários de terras – até indiciaram alguns ex-diretores da Fundação Nacional do Índio (Funai). Entre eles o ex-presidente João Pedro Gonçalves da Costa e dois ex-diretores de Proteção Territorial. Mas a Funai já está sob o controle deles, durante o governo Temer. Fica mais evidente o propósito de criminalizar o Conselho Indigenista Missionario (Cimi), organização ligada à igreja católica conhecida por defender as etnias.

O secretário-executivo do Cimi, Cleber Buzatto, e o presidente da organização, Roque Paloschi, são os recordistas de menções na lista de indiciados. Eles aparecem entre os indiciados do Rio Grande do Sul como “organizadores, estrategistas, coniventes e instigadores das ações ilícitas, altamente perniciosas, criminosas, voltadas para invasões de imóveis rurais por indígenas”. Eles voltam a aparecer nas listas de Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e Bahia. Só ficaram de fora da lista do Mato Grosso – outras Unidades da Federação não constam do relatório.

A conclusão geral do relatório, em três parágrafos, diz que os equívocos de políticas pretéritas (em relação aos indígenas) “têm servido de escudo a um falso discurso protecionista, a esconder interesses escusos, que vão desde o enriquecimento pessoal à mitigação da soberania”. A conclusão específica sobre a Funai fala em “desvio de recursos públicos e a gestão em benefício próprio de milhões de dólares que ingressam de entidades e governos estrangeiros”.

SUICÍDIO, MORTALIDADE INFANTIL ANEMIA

Os parlamentares procuram minimizar a luta dos indigenistas pelo direito dos povos originários à terra, que seria movido “por interesses outros que não a defesa dos indígenas”. Vejamos:

– Afinal, será que 50% das mulheres indígenas sofrem de anemia grave em razão da falta de terras ? (…) Será que o número calamitoso de crianças indígenas que morrem de diarreia (somente em uma Terra Indígena, foram, em um único mês, oito mortes) em razão da falta de terras?  Será que a taxa de suicídio entre os indígenas, que chega a ser 400% maior do que a taxa de suicídio entre o restante dos brasileiros, resulta somente em razão da terra5? Será que a taxa de mortalidade infantil indígena no País, que passou de 31,90 para 43,46  – um número duas vezes maior do que a média do Brasil e similar ao índice em países como a Namíbia ou São Tomé e Príncipe6 – se dá em razão da insuficiência do território?

O documento é dedicado, entre outros, ao bandeirante Pedro Teixeira.

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