25 de setembro de 2016

Mato Grosso do Sul concentra mais de 60% dos assassinatos de indígenas do Brasil

Nos últimos 12 anos, mais de 400 indígenas foram mortos no Estado do Centro-Oeste


Clodiodi Aquileu, morto em 14 de junho, foi mais uma vítima do genocídio no Mato Grosso do Sul / Cimi

Especial para o Brasil de Fato, do Mato Grosso do Sul, 
Mato Grosso do Sul voltou a ser foco dos noticiários com as atrocidades cometidas contra o povo Guarani e Kaiowá no último dia 14 de junho. Um ataque de pistoleiros armados, mais conhecidos como “jagunços”, contra a comunidade da terra indígena Dourados-Amambai Peguá, localizada no município de Caarapó, resultou no assassinato do Kaiowá e agente de saúde indígena, Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, de apenas 23 anos.
Relatos dos próprios indígenas revelam que o ataque durou cerca de quatro horas. Além do jovem assassinado, outras seis pessoas ficaram feridas por armas de fogo e foram encaminhados ao hospital, entre elas, uma criança de 12 anos, que foi atingida no abdômen. As vítimas permanecem internadas no Hospital da Vida, no município de Douradas. Apenas uma mulher, que foi atingida no braço, teve alta no início dessa semana, mas as outras se encontram em estado grave, com tiros no coração, cabeça, tórax e abdômen. O massacre foi uma resposta à retomada realizada pelos Kaiowás na fazenda Yvu, vizinha à reserva de Te’yikue.
O ataque na Terra Dourados-Amambai Peguá não é um fato isolado em Mato Grosso do Sul. Clodiodi Aquileu foi mais um jovem indígena que entrou nas fatídicas estáticas. Nos últimos 12 anos foram registrados mais de 400 homicídios no estado que concentra mais de 60% dos casos de assassinatos de indígenas do país. A região também concentra uma alta taxa de suicídios de indígenas, com 700 casos reportados. Os registros indicam um homicídio a cada 12 dias e um suicídio a cada sete dias.
Apenas em 2014 o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), registrou 138 casos de assassinatos e 135 casos de suicídios no país. Destes, 41 assassinatos e 48 suicídios aconteceram no Mato Grosso do Sul. Os dados também revelam um severo aumento das mortes por desassistência à saúde, mortalidade na infância, omissão e morosidade na regularização das terras indígenas.
De acordo com relatório e documentos do CIMI, somente no último semestre, já foram contabilizados ao menos 25 ataques contra os Guaranis e Kaiowás no Mato Grosso do Sul, os quais incluem ataques químicos, com a utilização de agrotóxicos e atentados a tiro.
“A perda dos nossos parentes dói na alma, na pele e está traumatizando a geração jovem indígena. O Brasil sempre foi nosso e a esperança que eu alimento e vou alimentar é a demarcação, sem ela nós não cuidamos da natureza, não nos alimentamos e por ela vamos lutar e morrer”, ressalta a jovem indígena Guarani Kaiowa, Geniana Barbosa, de 27 anos, da Comunidade Laranjeira Ñhanderu, no município de Rio Brilhante, ao lembrar que, infelizmente, os jovens indígenas passaram a conviver com essa realidade violenta.
Estado confina indígenas
O Mato Grosso do Sul possui pouco mais de 35 milhões de hectares, equivalente ao território da Alemanha, a terceira maior economia do planeta. As áreas urbanas de seus 79 municípios somam apenas 44,1 mil hectares.
Os Guarani e Kaiowás ocupam 35 mil hectares do Estado, com uma população total de 46 mil indígenas (IBGE, 2014). Há mais pasto para um boi crescer no Estado do que terra para uma família indígena criar os filhos, produzir o próprio alimento e enterrar os seus mortos.
Segundo dados do CIMI, estudos preliminares sobre o tamanho das terras reivindicadas pelos Guaranis e Kaiowás, o segundo maior povo indígena do Brasil, apontam que estas não devem ultrapassar 900 mil hectares. Ou seja, menos de 2,5% do território de Mato Grosso do Sul. Estas terras também não seriam em faixa contínua e buscariam restaurar os corredores ecológicos entre as principais bacias de rios da região sul do Estado.
Aos 70 anos, a cacique Damiana Cavanha sintetiza o símbolo da resistência Guarani e Kaiowá em Apycaí e o que siginifica ser indígena nesta região. Para ela, "a terra é para criar as coisas, plantar as coisas, para recuperar… Perdemos tudo, plantamos tudo. Tem mandioca, batata doce, não é muito não, mas já dá para a nossa família", disse em recente entrevista concedida ao programa Campo Grande News. 


O território reivindicado pelos índios na cidade de Dourados está atualmente arrendada para a usina São Fernando, de propriedade de José Carlos Bumlai.
Damiana sofre com a ameaça de despejo. O território Apycaí está a sete quilômetros do Centro de Dourados, sentido Ponta Porã, entre um riacho poluído e uma plantação de cana.
O prazo dado pela 1ª Vara Federal de Dourados era até meia-noite do último dia 14, para que ela e as oito famílias que ali ocupam saíssem por vontade própria. Até o momento, a ordem de despejo não foi cumprida. De qualquer maneira, Damiana foi enfática ao afirmar que não irá baixar a cabeça.
Os dados e a realidade vivida por estes povos apenas demonstram o quão cruel é a vida desta população, envoltos numa região dominada pela concentração de terras, onde a economia é baseada principalmente no latifúndio e no agronegócio.
Os indígenas estão confinados em pequenos terrenos, entre várias cabeças de gado, áreas imensas de pastagens e de plantações de monocultura, como soja, milho, eucalipto e cana de açúcar. 
Genocídio
Em seu artigo “Os condenados desta terra”, o professor Neimar Machado de Sousa, membro da Comissão Regional Justiça e Paz e professor na Faculdade Intercultural Indígena – FAIND da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), ressalta que a lista de violações de direitos dos povos indígenas no estado de Mato Grosso do Sul é tão grave e extensa que pode ser classificada em diversas categorias: “Insegurança alimentar; remoção dos territórios tradicionais para as reservas indígenas; violência contra a mulher nas áreas de retomada e nas reservas, criadas pelo Governo Brasileiro; contaminação por agrotóxicos; intolerância religiosa; assassinato; trabalho escravo; exploração sexual; crianças fora da escola e sem atendimento médico, isso num contexto demográfico em que 45% dos Guaranis e Kaiowás, neste estado, têm menos de 17 anos de idade”, explica.
A omissão do Estado brasileiro em cumprir os direitos indígenas estabelecidos na Constituição Federal em 1988, que previu a homologação e a demarcação das terras indígenas e o atraso na identificação destas terras, permite que a violência se perpetue e se converta em genocídio. Como consequência, a população sul-mato-grossense segue bastante preconceituosa em relação aos povos indígenas.
“Temos dois cenários: a omissão do estado e uma população preconceituosa, que vai sempre apoiar um lado apenas, pois é alimentada pela insensibilidade da mídia; e os interesses comerciais de grandes companhias e investidores, que patrocinam os veículos de comunicação mais expressivos”, afirma Machado.
Em artigo publicado pelo Empório do Direito, a pós-doutora em Direito pela Universidade de Londres, Fernanda Frizzo Bragato, define muito bem o que acontece na disputa de terra em MS, que na verdade é a velha conhecida, disputa de classe.
“O genocídio visa exterminar uma identidade coletiva, mesmo que seus membros permaneçam vivos, mas desde que alheios às diferenças e peculiaridades que os caracterizam. São grupos indesejáveis que desafiam, com sua cultura diferenciada, um conjunto de valores estabelecidos, levando ao ato irracional do extermínio”, afirma Fernanda.
A pesquisadora enfatiza também que “o que se passa no Mato Grosso do Sul é mais do que uma simples defesa da propriedade privada pelos produtores rurais que será exitosa com a morte do índio x ou y. Ou de mais uma demonstração de incompetência do Estado em relação a questões de segurança pública. É uma tentativa de extermínio do povo Guarani e Kaiowá que se tornou um excedente no seu próprio território nativo”, ressalta.
E em uma fala embargada pelo choro, Ambrósio Ricardi, liderança da aldeia, Ñanderu Marangatu, que fica no município de Antônio João lembra do pesado ataque armado que seu povo sofreu no dia 29 de agosto de 2015. O ataque culminou com o assassinato do líder Kaiowá Guarani, Simião Vilhalva. Para Ambrósio, as condições nos territórios indígenas “são precárias”.
“Muitas vezes passamos fome, as crianças ficam sem comida. A saúde vai mal, não se pode plantar nada, pois os fazendeiros colocam veneno em todo o solo e os rios são poluídos, nós não morremos só de bala em ataque que vem do nada não, nosso povo está morrendo todo dia um pouquinho”, conclui.
Edição: José Eduardo Bernardes


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