10 de novembro de 2015

Carta em repúdio à perseguição de advogado indígena no Mato Grosso do Sul

Foto _ Kátia Queiroz
"Seja pelo seu povo, intelectuais, missionários, ativistas, colegas, o advogados Luiz Henrique Eloy Amado é mais do que perseguido: Respeitado e Amado"Tereza Amaral

Com Sônia Guajajara (Apib) e o intelectual, escritor e professor português Boaventura de Sousa
 Santos Imagem _ Reproduzida Google

Pedro Pulzatto Peruzzo* em Justificando.com

Recebemos a notícia de que, pela segunda vez, a OAB do Mato Grosso do Sul instaurou procedimento disciplinar para cassar o registro do advogado terena Luiz Henrique Eloy[1]. O motivo é o fato de Eloy ter apoiado e prestado orientação jurídica para grupos indígenas em retomadas de terra. Considerando a dificuldade de ter acesso a todos os atos e termos do processo disciplinar, considerando tratar-se do segundo episódio de perseguição no estado da federação que mais mata indígenas, bem como considerando manifestação de apoio ao colega Eloy pelo professor português Boaventura de Sousa Santos, esta carta de apoio foi redigida como medida de cautela com o propósito de evitar danos irreparáveis à carreira do colega e à advocacia como um todo.

A Constituição Federal diz o seguinte em seu artigo 133: O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei. Três pontos devem ser destacados: 1- o advogado é indispensável à administração da justiça; 2- o advogado é inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão; 3- essa inviolabilidade deve obedecer aos termos da lei.

No que diz respeito ao primeiro ponto, o advogado é o responsável por movimentar o Poder Judiciário na garantia e promoção dos direitos assegurados na Constituição e nas leis. Além disso, é exatamente o papel de retirar o Judiciário da inércia que a Constituição lhe impõe que faz do advogado também um ator indispensável para a garantia e a promoção da justiça enquanto valor, ou seja, para a consecução do justo.

A Constituição Federal ainda fixa como objetivo da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, inciso I) e a promoção do bem todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º, inciso IV). Nesse sentido, a Constituição de 1988 avança em relação à ideia reducionista e equivocada que entende a democracia como simples vontade da maioria e consagra uma concepção democrática que se preocupa com o bem de todos, sem exclusão de ninguém, instituindo, assim, uma base hermenêutica para uma leitura mais participativa e aberta de todo o ordenamento jurídico brasileiro, compreendendo o povo (demos) como um conjunto plural de titulares do poder (kratos).

Questão central para a democracia brasileira é o fato de valer como regra a forma representativa e, infelizmente, existir também um déficit de representatividade democrática, especialmente no Poder Legislativo. Os mandatários que ocupam cargos eletivos ou executivos no Estado brasileiro são, em grande parte, representantes de interesses de grupos econômicos privilegiados. Ou seja, a maior parte da população, os mais pobres, indígenas, quilombolas e outros grupos historicamente excluídos não conseguem fazer valer seus interesses no formato puramente representativo da democracia. Daí a importância da participação direta, nos termos do parágrafo único do artigo 1º da Constituição.

Sabemos que participar dos assuntos públicos do país é um direito consagrado em vários documentos de relevância nacional e internacional: o artigo 25 do Pacto de Direitos Civis e Políticos de 1966[2] (Decreto n. 592 de 06 de julho de 1992); os artigos 6, 1, b, e 7, 1 e 2 da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho[3] (Decreto n. 5.051 de 19 de abril de 2004); o artigo 23, 1, a, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos[4] (Pacto de São José da Costa Rica, internalizado no Brasil pelo Decreto Legislativo 27/1992).

Também sabemos que não é viável, hoje, a participação direta como ocorria na Grécia, quando as pessoas iam para a praça pública votar. No entanto, ainda que o modelo de participação direta por parte de cada cidadão individualmente não seja totalmente possível, também é fato que o modelo representativo por si só tem se mostrado falido e insuficiente. Daí emerge a proposta da participação social, ou seja, da participação na condução dos assuntos públicos não apenas por parte dos deputados, dos senadores, dos ministros, governadores, vereadores, mas também pelo povo, como ocorre nos conselhos de saúde, nos orçamentos participativos, etc. Sem dúvida o cidadão que representa o povo nesses foros está também “representando”, mas a proximidade com o povo evita a repetição da lógica dos privilégios dos grupos hegemônicos que marca a representatividade no Congresso Nacional, nas Assembléias Legislativas e nas Câmaras de Vereadores, por exemplo.

Sabemos que é o abismo entre os mandatários do exercício do poder político e o povo que contribui para a fertilização dos campos propícios à corrupção, às práticas não republicanas e às ditaduras. Nessa linha, o fortalecimento das políticas públicas de acesso às universidades para negros, indígenas, pobres e outros grupos historicamente excluídos, como as mulheres, é fundamental para a promoção da participação social, pois um advogado indígena, por exemplo, tem muito mais conhecimento da situação real dos indígenas do que um advogado não-indígena. Eis a relevância política, social, cultural e também econômica das cotas para esses grupos historicamente excluídos. Eis o papel essencial para o enraizamento da prática democrática participativa do exercício pleno, livre e autônomo da advocacia por advogados indígenas, e é disso que queremos tratar aqui.

Como afirma a Constituição, e aqui entra o segundo ponto importante do artigo 133, o advogado é inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão. Além disso, o artigo 7º do Estatuto da OAB (Lei 8.906/94) diz ser direito do advogado exercer, com liberdade, a profissão em todo o território nacional, enquanto o artigo 2º, inciso II, do Código de Ética e Disciplina da OAB, diz ser dever do advogado atuar com destemor. Nesta altura, resta saber se prestar orientação jurídica a grupos indígenas em retomada de terra representa afronta à lei, terceiro ponto de atenção do artigo 133 da Constituição Federal.

O assessoramento jurídico em juízo ou fora dele por advogado a movimentos sociais, manifestações populares ou a grupos indígenas em processo de retomadas de suas terras não representa afronta a qualquer lei; muito pelo contrário, a ação jurídica para orientar retomadas de terras indígenas é DEVER do advogado, pois diz respeito ao exercício de um direito fundamental há muito tempo previsto nas declarações de direito do ocidente, que é o direito de resistir contra a opressão.

O direito à resistência contra a opressão recebeu previsão expressa no artigo 2º da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, nos seguintes termos: A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. Esse direito também apareceu expressamente no artigo 23 da Declaração francesa de 1793, ou seja: A resistência à opressão é a conseqüência dos outros direitos dos homens.  Por fim, vale registrar que existe a garantia desse direito também na Lei Fundamental da República Federal da Alemanha (Grundgesetz):
Artigo 20 [Princípios constitucionais – Direito de resistência]
(1) A República Federal da Alemanha é um Estado federal, democrático e social.
(2) Todo o poder estatal emana do povo. É exercido pelo povo por meio de eleições e votações e através de órgãos especiais dos poderes legislativo, executivo e judiciário.
(3) O poder legislativo está submetido à ordem constitucional; os poderes executivo e judiciário obedecem à lei e ao direito.
 (4) Contra qualquer um, que tente subverter esta ordem, todos os alemães têm o direito de resistência, quando não houver outra alternativa.

Ainda que não exista previsão expressa desse direito na Constituição de 1988, é consequência lógica o reconhecimento de que ele decorre do regime e dos princípios por ela adotados, nos termos do que dispõe o seu parágrafo 2º, do artigo 5º. O direito à resistência é fundamental para o exercício da cidadania e para a participação política, pois sem esse direito os indígenas ficam presos a um conjunto restrito de possibilidades. As retomadas de terra não podem mais ser criminalizadas no Brasil.

O Código Civil, em seu artigo 1.210, parágrafo 1º, diz que o possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo. O parágrafo 2º do mesmo artigo diz que não obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade. Nessa linha, considerando que os indígenas resistem desde a chegada do invasor colonial, se o parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição Federal diz que são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas, então não há de se falar em desforço imediato sobre terra indígena, senão pelos próprios indígenas. Do mesmo modo, não há de se recorrer ao citado parágrafo 2º, pois não existe posse a ser reintegrada a fazendeiro algum, pois o título é nulo, não produzindo efeitos jurídicos.

Resistir contra a opressão significa poder lutar por direitos sem ser criminalizado, sem ser assassinado, recorrendo aos próprios direitos assegurados na lei para fazer valer na prática exatamente esses direitos. Assim sendo, o direito à resistência contra a opressão é uma decorrência lógica da Constituição de 1988 e a atuação jurídica do advogado Luiz Henrique Eloy, e de todos os outros advogados que atuam na orientação e defesa de grupos indígenas, ENOBRECE e FORTALECE a prática democrática da advocacia no Brasil.

Por todo o exposto, apoiamos a continuidade do trabalho do advogado indígena Luiz Henrique Eloy, repugnamos as perseguições políticas à advocacia e pugnamos por um desagravo público pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil a esse advogado em razão das perseguições sofridas no exercício da sua profissão no Estado do Mato Grosso do Sul e em razão dela.

Para quem quiser apoiar esta carta, elaboramos uma petição pública. Leia e apoie neste link.

*Pedro Pulzatto Peruzzo é advogado militante junto a movimentos sociais, doutor em Direito pela USP, professor de Direito Constitucional e diretor da Comissão de Direitos Humanos da OAB-Jabaquara.

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