26 de agosto de 2015

Um campeonato indígena decidido no par ou ímpar

Lições de um torneio de futebol disputado por etnias do Xingu

A final entre os Diauarum e os Kaiabi foi decidida na moedinha, após interminável sequência de pênaltis


Por Ivã Gouvêa Bocchini, em Carta Capital


O campeonato era para valer. Seis times dos apicultores do Parque Indígena do Xingu disputavam o troféu. Uniformes, juiz em campo, bola nova, muita vontade. A final, entre o Diauarum e o Kaiabi, terminou empatada no tempo regulamentar. Na prorrogação, persistiu o empate, e então vieram os pênaltis. Os cobradores estavam inspirados, não perdiam uma. Várias cobranças depois, o sol havia se posto e ficara escuro demais. Os goleiros alegaram, com razão: não dava mais para enxergar a bola. O juiz determinou que a partida fosse resolvida no par ou ímpar. Venceu o Diauarum, que jogava em casa, escolheu o ímpar e levou a taça.
Os Kaiabi lamentaram o resultado, mas aceitaram bem a derrota e festejaram o vice-campeonato. Um banho coletivo no Rio Xingu seguido de uma churrascada de pintado celebrou o torneio e seu resultado. 
As gerações mais jovens dos povos indígenas do Xingu aderiram definitivamente ao futebol nas últimas décadas. Jogam quase todo fim de tarde, usam chuteiras, camisas de time (mesmo fora de campo), torcem e acompanham campeonatos. Mas tudo de um jeito bem diferente dos demais brasileiros, principalmente aqueles do Sul e Sudeste.
Cada aldeia tem um time. A divisão segue, mas não por uma lógica bairrista, o que manda é o parentesco. Assim, um homem casado geralmente joga ao lado de seus cunhados, enquanto o solteiro fica com os irmãos. Vencer ou perder importa, mas definitivamente não é a questão central. Nada dessa história de competir fervorosamente, enganar o juiz e machucar o adversário se for preciso. Ao menos não como estratégia deliberada e legítima, conforme aprendemos desde a infância.
Também não fica humilhado quem perde e não se glorificam os vencedores. Excessos em geral não fazem parte do jogo de futebol indígena. 
O campeonato decidido no par ou ímpar integrava a programação do Encontro Anual de Apicultores do Parque Indígena do Xingu. Há 15 anos os índios da região produzem mel em decorrência de uma parceria entre a Associação Terra Indígena do Xingu (Atix) e o Instituto Socioambiental (ISA). Atualmente, são mais de cem apicultores das etnias Kawaiweté, Yudjá e Kisêdjê, moradores de 30 aldeias nas porções norte e leste da terra indígena. O mel dos índios do Xingu recebe selo de produto orgânico e participa do projeto Caras do Brasil do Pão de Açúcar, que o revende em suas lojas.
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O campeonato celebrava os 15 anos do projeto de apicultura. Créditos: Marcelo Martins
O mel sempre foi alimento apreciado pelos índios da região. Eles o coletavam na mata, não criavam abelhas como agora. O produto também não vem da Apis mellifera, chamada abelha-europeia, espécie invasora, mas de dezenas de variedades nativas sem ferrão que habitam a Floresta Amazônica. 
E “dezenas” não é força de expressão. Estudo de mais de dez anos realizado pelo ecólogo Jerônimo Kahn Villas-Bôas com os kawaiweté demonstra que eles conhecem 44 espécies de abelhas nativas, sobre as quais discorrem a respeito dos hábitos de nidificação (construção de ninhos ou, no caso, de colmeias), flores preferidas para alimentação, morfologia, comportamento, usos medicinais e espirituais.
O conhecimento enciclopédico dos kawaiweté rendeu aos indígenas um convite para participar da Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES, em inglês), comunidade científica ligada à ONU que pensa soluções para as ameaças à biodiversidade no planeta.
Neste ano, o IPBES tem reunido informações sobre os serviços prestados gratuitamente pelos polinizadores para a sustentabilidade da produção agrícola mundial. Cientistas há muito sabem da importância das abelhas para a produtividade agrícola. A comunidade científica discute agora como transformar esse conhecimento em políticas públicas para a proteção do habitat dos polinizadores. Em tempos de ataque da bancada ruralista aos direitos indígenas e seus territórios, logo se vê que não são só os milionários dos gramados que têm muito a aprender com os índios.

*Uma versão desta reportagem foi publicada originalmente na edição 863 de CartaCapital, com o título "Par ou ímpar"
 

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