15 de dezembro de 2014

Sentença da Justiça Federal acirra conflitos em Santarém

Juiz Airton Portella lavrou decisão na qual disse que indígenas são falsos e terra indígena “inexistente”


por Felipe Milanez, em Carta Capital


Escreveu certa vez Frantz Fanon: “O racista numa cultura com racismo é por esta razão normal. Ele atingiu a perfeita harmonia entre relações econômicas e ideologia”.
A aparente harmonia que caracteriza o racista como um “normal” numa dada cultura racista, como descreve Fanon, pode ser encontrada nas instituições como no Judiciário. Decisões racistas que transparecem uma normalidade dentro de um dado contexto. São racistas e, por isso, normais. Essa é uma das características do mundo colonizado e permanece no processo de descolonização – este sempre violento, no pensamento de Fanon.
Nas últimas semanas, a Justiça Federal, que possui a competência constitucional para certos assuntos envolvendo sociedades indígenas, produziu decisões que podem ser analisadas à luz destas ideias de Fanon sobre racismo: as decisões possuem tons racistas por racializarem situações de conflitos sociais e tomarem decisões com base em critérios racializados de categorização de sujeitos e grupos sociais, os quais são aparentemente “normais”.
A primeira determinou a prisão e a transferência do cacique da aldeia Itahy, do povo Aikewara, para Belém, em razão da “condição indígena”. O caso foi reportado em três textos aqui nesse blog (leia-os aquiaqui e aqui). Enquanto a segunda, bem mais polêmica, foi lavrada em Santarém, Oeste do Pará, na quarta-feira 3 de dezembro, e provocou revolta e protestos, incluindo a ocupação da sede do Fórum por manifestantes. Na terça-feira 9, a Justiça Federal em Santarém foi ocupada por mais de cem indígenas de diversas etnias da região, que acusam o juiz federal Airton Portela de ter escrito uma sentença racista. Na quinta-feira 11, aconteceu uma audiência pública no Ministério Público Federal. Tudo em razão do teor da decisão de Portela.
Sentença cega não enxerga índios
Em uma ação originada pelo MPF para cobrar do governo federal a demarcação da Terra Indígena Maro, habitada por indígenas Borari e Arapium, o juiz Portela inverteu o objeto do processo para declarar a Terra Indígena Maró inexistente, os indígenas que vivem lá como “falsos”, e negar validade jurídica ao relatório produzido pela Funai que identificou e delimitou a área de 42 mil hectares para demarcação.
A fundamentação do juiz irritou a população indígena do Baixo Tapajós.
Portela desconsidera o laudo elaborado pela Funai dizendo que ele “não forneceu qualquer evidência de que os pretendentes à condição de indígenas sejam descendentes das extintas etnias Arapium e Borari” – o que nega a existência daqueles que estão lá. Se existem, logicamente que não são descendentes dos extintos. Trata-se de uma impossibilidade existencial.
O juiz chama os indígenas de “supostos índios” e diz existir um “processo de conversão de populações tradicionais (ribeirinhos)em indígenas e a teoria do ressurgimento (etnogênese ou emergência étnica).” Diz ainda: Os comunitários que ora se autodeclaram indígenas viveram e ainda vivem como quaisquer pequenas povoações da Amazônia e, à exceção de elementos recentes e artificialmente incorporados por indução externa, nada está a indicar tratar-se de grupamentos indígenas. Na verdade, tratam-se de comunidades ribeirinhas que, há bem pouco tempo, nem sequer cogitavam descenderem de indígenas que em tempos remotos habitaram a região.” Nessa linha de argumento, o juiz ainda fala de “supostos rituais” — ofendendo a liberdade religiosa e de culto.
Repetidas vezes o adjetivo “suposto” é empregado antes do substantivo “indígena” no teor da sentença. A convicção pessoal do magistrado ficou muito acima da lei, e por isso a decisão merece ser reformada. Porém, até que um tribunal conserte o estrago, ela pode produzir efeitos sociais bastante nocivos na região.
Os anti-índios
Os argumentos do juiz podem ter surgido a partir da entrada na lide de sete associações que se dizem contrária à autodeclaração indígena, entre elas a Associação Comunitária dos Trabalhadores Rurais do Aruã e Maró (Acutarm), que é ligada aos empresários madeireiros que querem explorar madeira na área, e que seria a contratante de um antropólogo chamado Edward Mantoanelli Luz. Ferindo o princípio da isonomia, o juiz não aceitou a participação de uma associação que representa os indígenas.
Essa associação, a Acutarm, apresentou uma contestação, ao laudo da Funai, que foi feita por Edward Luz. Em nenhum momento este documento é citado pelo juiz na sentença. Mas de alguma maneira pode ter formado a sua convicção, o que agradou Luz, que se vangloriou em sua conta no Twitter: “Não posso negar q todas, todas as teses q defendi foram sustentadas e defendidas pelo Juiz Portela!!”
A construção do argumento de Portela é peculiar: ele cita diversos trabalhos que reconhecem a identidade indígena para então mudar o sentido da argumentação original a sem bel prazer. Pega trechos do relatório da Funai, de um laudo do MPF, de falas ou escritos dos antropólogos João Pacheco de Oliveira e Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional, e até mesmo um trecho da reportagem que escrevi sobre o conflito, para a revista RollingStone, em 2011, que pode ser acessada aqui. Em todos estes casos, o juiz consegue distorcer as citações para encontrar palavras que sirvam a seu objetivo, descontextualizadas do sentido original – essa é outra razão para a anulação da sentença, pois dos argumentos expostos não decorre a conclusão.
Sobre o laudo da Funai diz que a “antropóloga Geórgia Silva, lança mão de vários remendos argumentativos sem qualquer densidade factual.” Portela interfere, dessa maneira, em um processo administrativo de competência exclusiva do Executivo, abrindo um precedente inédito.
O juiz inverte até mesmo o conteúdo de uma entrevista de Viveiros de Castro, como já o fez a revista Veja na famigerada matéria “A Farra da Antropologia Oportunista”, para colocar na boca do antropólogo a ideia de que ele “não deixou de externar sua preocupação com a postura pouco isenta de antropólogos”, algo que em nenhum momento da entrevista ele externa. Enquanto Viveiros de Castro diz que não cabe ao antropólogo agir como se fosse um “juiz” para dizer quem é o que e quem não é, e sim respeitar a autodeclaração, já que, para ele, “índio é quem se garante”, ou seja, quem luta para se identificar como tal em uma sociedade racista, Portela veste um chapéu inexistente e atribui a si uma super capacidade de definir e categorizar a todos, apenas com a força de sua caneta e seus preconceitos.
Não parece ser por erudição científica do juiz que o trabalho de Viveiros de Castro aparece na sentença, mas por ter sido provocado por Luz, em seu laudo e textos na imprensa local. A atuação de Luz nesses conflitos no baixo Tapajós foi objeto de sérias criticas do antropólogo Leandro Mahalem de Lima (que pode ser lida aqui). Luz estudou na Universidade de Brasília, assumiu como uma missão a agressão pública a povos indígenas, se aliou com fazendeiros, madeireiros, deputados que odeiam indígenas, até que veio a ser expulso da Associação Brasileira de Antropologia (AVA), e parece vislumbrar em um embate imaginário com o famoso antropólogo Viveiros de Castro uma chance de aparecer e ganhar visibilidade.
Até eu tive meu trabalho deturpado nessa sentença. O juiz conseguiu extrair trechos da longa reportagem que escrevi para a revista RollingStone, com o sugestivo título de Medo e Tensão no Oeste, e simplesmente omitir o fato de que a tensão provocada nas comunidades que não se identificavam como indígenas estava diretamente ligada à pressão da exploração madeireira. Ele também omite a denúncia que apresento da complexa relação do antropólogo Luz com missionários evangélicos proselitistas com interesse nas almas de indígenas – outra pressão sobre “recursos” que existem na região.
Gasolina no conflito
O juiz deve ter imaginado que inverter os argumentos de outros a seu bel prazer é capaz transformar o conteúdo e o pensamento daqueles que o produziram. A sentença, além de tudo, contém erros grosseiros de gramática, é bastante mal escrita e longa, com mais de 100 páginas, possui citações desconexas, preconceitos expostos sem rodeios. É uma decisão que ofende o Judiciário, atropela fatos e difama lideranças locais. Tem tom provocativo e incita ao conflito – ao invés de dirimir os conflitos tal como é a tarefa do judiciário. É de se questionar se essa seria a postura correta de um representante do Judiciário em uma região de conflito.
O resultado, até o momento, tem sido a explosão do conflito na região, protestos, ocupação do fórum da Justiça Federal e um clima de guerra.
Portela ataca as lideranças indígenas Florêncio Vaz e Dada Borari. Sobre Vaz, ele escreve: “chama a atenção o fato de Florêncio Vaz haver chegado ao extremo de transportar lideranças comunitárias para doutrinamento (que chamou de conscientização étnica) em outro Estado da Federação” — como se as lideranças fossem gado, em processo que o juiz chama de “catequeses ideológicas” (assim mesmo, em negrito grotesco).
Chama Dada Borari de “falso índio” e de “autoproclamar-se “Segundo cacique”” — novamente no tom da matéria da revista Veja, de 2010, “A Farra da Antropologia Oportunista”, matéria em virtude da qual a revista responde hoje a um processo do Ministério Público Federal por racismo. Portela diz que Dada seria “formado por Florencio Vaz” e omite, assim como o fez a Veja, que Dadá é ameaçado de morte e está no programa de proteção a defensores de direitos humanos. Terá responsabilidade caso o juiz do caso Dadá venha a ser assassinado, uma vez que a sentença vem a corroborar as difamações que o líder indígena já sofre pela imprensa marrom?
Como conclusão, o juiz Portela declarou “não atendidos dois dos três requisitos indispensáveis (relacionados pela lei n. 6.001/1973, em seu art. 3º) para que a condição jurídica de índio seja reconhecida, a saber: 1) origem e ascendência pré-colombiana; 2) ser identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional” — uma afirmação que não faz o menor sentido no sistema jurídico nacional, pois não cabe ao Judiciário, segundo o artigo 231 da Constituição Federal, identificar os indígenas, e sim à Funai. É, portanto, uma usurpação de sua competência.
Os indígenas organizaram um protesto e ocuparam a Justiça Federal na terça-feira 9. Na quinta, eles deixaram o prédio e se dirigiram à sede do MPF para reunião em que estiveram o procurador do MPF, o procurador da FUNAI, a advogada da Terra de Direitos, a CPT, estudantes e professores de antropologia da UFOPA e as lideranças indígenas. Onde foi explicado que o próximo passo é tentar reverter a sentença por meio do recurso de apelação, sendo que o MPF tem 30 dias para interpor o recurso, e o prazo ainda não foi aberto para a Funai.
“Acreditamos que essa sentença é discriminatório e corrobora com a ação de violência e extermínio dos povos indígenas no Brasil”, me disse a advogada da Terra de Direitos, Erina Gomes. “Se mantida, terá efeitos catastróficos para todos os povos indígenas do Baixo Tapajós. Mas acreditamos, e iremos desenhar todos os esforços necessários para que ela seja revertida e sejam cumpridos o disposto na Constituição Federal e na convenção 169 da OIT."

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